Crítica de games, por que precisamos disso, e por que reviews não o são

Por Greg Costikyan. Traduzido por Janos Biro Marques Leite

A causa mais imediata para esta reclamação é uma das poucas sessões que participei na GDC [Game Developers Conference], coordenada por N’gai Croal, sobre jornalismo de games. Não vou discutir a sessão (que foi moderadamente interessante), mas sim o consenso dos conferencistas, vindos de fontes tão diversas como a Kotaku, 1 Up, Game Informer, e MTV, sobre “reviews” e “crítica”.

Certamente são pessoas que deveriam ter pensado melhor.

Não há praticamente nada que se possa apontar hoje em dia como “crítica de games”. E nós precisamos muito disso.

Durante o painel, os participantes mencionaram tanto Pauline Kael quanto John Simon, críticos de cinema historicamente importantes; mas nenhum deles parecia entender que estes não eram analistas profissionais, muito menos jornalistas.

Um review é um guia para compradores. Ele existe para informá-lo sobre algum produto novo que você pode comprar, e se você deve ou não comprá-lo. Um bom review vai mais além, e sugere quem deve comprá-lo, já que nem todos gostam de tudo. (Por exemplo, um romance pode ser muito bom para o seu tipo, mas é bastante improvável que me agrade, já que não é um gênero que eu gosto).

Assim, Ebert [Roger Ebert, do Chicago Sun-Times] é, em última análise, um analista; o resultado líquido de sua discussão de uma obra é um polegar para cima ou polegar para baixo. Note que ele também é um observador informado e inteligente dos filmes, e sua discussão de um filme muitas vezes vai na direção da crítica, mas ele não está sendo pago para escrever críticas. Pauline Kael foi.

A crítica é um debate informado, feito por um observador inteligente e conhecedor de um meio, dos méritos e da importância (ou da falta dela) de uma obra particular. A crítica não se destina a ajudar o leitor a decidir se quer ou não gastar dinheiro em algo; as decisões de compra de alguns leitores podem ser influenciadas, mas orientar as suas decisões não é o propósito do trabalho crítico. A crítica é, em certo sentido, meramente “escrever sobre” – sobre arte, sobre dança, sobre teatro, sobre um texto, sobre um jogo – sobre qualquer obra de arte em particular. Como uma crítica se aproxima de uma obra, e qual a abordagem ela usa, pode variar muito de crítico para crítico, e de obra para obra. Existem, de fato, muitas abordagens críticas válidas para uma obra, e em qualquer momento dado, uma crítica pode adotar apenas uma, ou vários delas.

Algumas abordagens críticas válidas? Onde é que esta obra se encontra, em termos da evolução histórica do seu meio. Como esta obra se encaixa entre as obras anteriores do criador, e o que diz sobre a sua evolução contínua enquanto artista. Quais as novas técnicas que este trabalho introduz, ou como usa as técnicas já conhecidas para criar um efeito novo e impactante. Como se compara às outras obras com ambições ou temas semelhantes. O que o criador estava tentando fazer, e quão bem ou mal ele atingiu suas ambições. Que emoções ou pensamentos ela induzir nas pessoas expostas à obra, e o efeito final é esclarecedor ou incoerente. Qual é o subtexto político da obra, e o que ele diz sobre relações de gênero / questões políticas atuais / o debate natureza-criação, ou sobre qualquer outra questão intelectual particular (mesmo que essa questão seja uma preferência particular do escritor, ou inerentemente levantada pela obra em questão).

Se isso não ficou claro, o conjunto de perguntas do parágrafo anterior não tinha a intenção de ser uma lista exaustiva de todas as questões possíveis que uma crítica pode abordar; a crítica pode, de fato, abordar qualquer conjunto de questões de interesse do escritor (e, idealmente, do leitor) que são centradas em uma obra de arte em particular.

A palavra mais importante na última frase é “arte”. Crítica é sobre arte. Reviews não são sobre arte, você pode resenhar qualquer coisa. Você pode comparar marcas de manteiga, você pode resenhar detergente, pode resenhar punhetas dadas a você por prostitutas diferentes. Reviews são simplesmente sobre se algo vale o dinheiro, nada mais e nada menos.

E você pode, de fato, escrever críticas sobre estes mesmos assuntos, por mais estranho que possa parecer. A crítica sobre a manteiga pode ir para as técnicas usadas na produção da manteiga, e os efeitos produzidos, assim como a paixão de pequenos produtores de manteiga artesanal por este ofício. A crítica sobre punhetas pode começar com entrevistas aos envolvidos, as prostitutas e as suas motivações, e até que ponto elas gostam de dar prazer e em que grau eles simplesmente querem que seus clientes acabem para que elas possam ir para o próximo, e os efeitos de posições específicas dos dedos em momentos diferentes do processo. Crítica sobre detergente – bem, você me pegou nessa, mas eu tenho certeza que um escritor que fosse apaixonado sobre esse assunto iria encontrar algo mais a dizer do que “a marca X é melhor do que a marca Y, por um bom preço”.

O ponto é que um crítico tem de levar seu assunto a sério, como um exemplo de arte, ou pelo menos de um ofício; e levar a sério também a intencionalidade do criador, e a importância para aqueles que experimentam os resultados dos resultados, e o impacto sobre a forma como eles pensam e sentem. Reviews não chegam aí; eles te dão três estrelas. Bom ou ruim, isso é tudo com que as reviews estão preocupadas.

A crítica entende que “bom” e “ruim” são apenas a superfície. O que é mais importante é o porquê, e como, e para que fim.

Já deixei claro agora? Reviews são o epifenômeno inevitável de nossa sociedade de consumo, escritas para ajudar os consumidores a navegar pelas inúmeras opções disponíveis a eles. Elas podem ser bem ou mal feitas, mas elas não são nada mais do que coisas efêmeras. Tenho certeza que os jornais da América do início do século XIX tinham reviews dos romances de James Fenimore Cooper, que foram completamente esquecidas, e devem ser, porque, por natureza, elas eram de interesse apenas dos leitores dos jornais da época. Por outro lado, As ofensas literárias de Fenimore Cooper, de Mark Twain, é considerado ainda um exemplar de crítica literária.

(Para desviar a propósito, é uma crítica totalmente injusta, e ignora as múltiplas virtudes literárias de Cooper; pode-se salientar que na época de Samuel Clemens, Cooper foi amplamente considerada o maior romancista da América até a data, uma posição que Mark Twain mais tarde suplantou. O ensaio também pode ser lido – como raramente é – como um ataque calculado e altamente eficaz de um rival literário, e, como tal, deve ser tratado com muito menos respeito, e muito mais ceticismo, do que normalmente é. Aí está, no espaço de um parágrafo, eu escrevi uma crítica de uma obra de crítica).

Similarmente, não haveria qualquer sentido hoje em dia em escrever uma review de Ultima IV, uma vez que não é mais vendido faz muito tempo. Uma obra útil de crítica, no entanto, é perfeitamente concebível: discutindo, talvez, o seu papel como um dos primeiros games a considerar as implicações morais dos atos de um jogador, e a usar combate tático como um minigame dentro do contexto de uma obra maior e mais estratégico. Tal artigo, bem escrito, de preferência com uma compreensão da influência do roleplaying de mesa sobre o desenvolvimento dos primeiros RPGs de computador ocidentais, e do local da presente obra na forma geral do trabalho de Richard Garriot seria de interesse para os leitores hoje em dia, mesmo que eles dificilmente encontrem uma maneira de comprar o maldito jogo. E ela pode encontrar um lugar em antologias e estudos sobre as origens da popular mídia dos games no século XX, indo até o futuro indefinido.

A verdade é que, na sua maior parte, não temos nada parecido com uma crítica de games, e precisamos dela – para informar os jogadores, para manter os desenvolvedores na tarefa, e informar o nosso entendimento cultural mais amplo dos games e sua importância e impacto em nossa cultura.

Precisamos de nossa própria Pauline Kaels e John Simons – e nós precisamos garantir que quando eles aparecerem, ninguém insista em anexar uma maldita pontuação numérica à sua escrita, porque isso é totalmente irrelevante para a tarefa de escrever seriamente sobre games.

E mesmo em uma questão mais imediata, precisamos que esses escravos chamados analistas, apesar do parco salário que recebem, pensem mais seriamente sobre questões críticas também. Por que uma review de RTS (Real-time strategy) que não compreende a evolução histórica desse gênero e o lugar que uma obra particular ocupa no espectro dos RTS publicados anteriormente deveria ser considerada de qualquer interesse?

Agora aqui no Play This Thing! (site do autor do artigo), nós não nos vemos como “críticos de games”, pelo menos no sentido forte que atribuí à noção aqui. Nossa missão para os escritores é simplesmente “encontrar um jogo que você gosta, e escrever algo interessante sobre ele”. Ao mesmo tempo, nós também não nos vemos como analistas; estamos aqui para apontar para os games que nós pensamos ser interessantes, não para dizer o que é bom e o que não é. E esta mesma abordagem nos liberta das restrições dos “analistas”; precisamos dizer que algo é interessante, e porque, e não dar um polegar para cima ou polegar para baixo. Como resultado, os nossos escritores chegam, eu acho, mais próximos de uma crítica real do que os escritores na maioria dos sites – cada um em sua própria maneira individual. Assim eu tendo a usar uma abordagem pedante, com referências à história da forma e do local das obras nessa evolução; the99th tende a falar sobre ideias teóricas de design e ceder à pirotecnia verbal hip-intelectual; e EmilyShort tende a falar muito sobre intencionalidade do design.

Mesmo se não produzirmos, em geral, uma verdadeira crítica – que é quase sempre em forma de ensaio – ainda estamos vendo as obras em questão a partir de uma postura intrinsecamente crítica.

Será que mais alguém no ramo dos games fez isso? E outras publicações achariam importante, ou mesmo interessante, promover uma análise crítica dos games, ao invés de mais uma review com pontuação?

E isso, creio eu, nos leva à nossa conclusão, mas eu não consigo evitar apontar algumas coisas, que são inerentes, mas podem não ser imediatamente óbvias:

Este post é um ensaio. É um ensaio na forma de uma crítica, a crítica é a do fracasso daqueles que escrevem sobre games em ter uma visão crítica e analítica das obras que escrevem sobre, e de sua incapacidade de fazer uma distinção clara entre “review” e “crítica”, que são, de fato, bichos muito diferentes. É, se quiserem, uma crítica da crítica aos games.

E um pensamento final: Será que Pauline Kael ou John Simon já permitiram que a sua crítica sofresse a indignidade de ter uma pontuação numérica anexada?

E será que o seu trabalho teria sido melhor se eles tivessem?

Greg Costikyan é designer de jogos com mais de 30 jogos publicados comercialmente em vários gêneros e plataformas. Ele tem escrito sobre a indústria dos games para publicações como o New York Times, Salon, e Game Developer Magazine. Atualmente, trabalha no laboratório do centro de pesquisas em tecnologia multimídia da Nokia, como pesquisador de games.

Janos Biro Marques Leite é mestrando em sociologia na UFG e está pesquisando sobre autonomia e cibercultura. É desenvolvedor independente de jogos, e escreve sobre games enquanto cultura no site Gamecultura e no seu blog, Arte e jogos.