Audaciosamente indo onde nenhum desenvolvedor jamais esteve!

Por Renato Degiovani, especial para o GameReporter

Quando propus a questão do jogo sem narrativa embutida, descrita no post “Não, não se trata de criar a Skynet!” estava na verdade fazendo uma provocação ao Arthur Protasio e seus instigantes vídeos sobre narrativa. Todo exercício de raciocínio deve ser levado ao extremo das suas possibilidades, para que deles possamos tirar algum proveito ou aprendizado.

Isso quer dizer que não acredito numa solução para a proposta? Bem, sempre há alguma esperança. E não, não estou dizendo que isso é a salvação da pátria para nenhum jogo ou desenvolvedor. É apenas uma (como tantas outras) importante forma de entender como as coisas funcionam, no mundo da criação. Afinal, todo mundo quer que o seu jogo seja considerado “o” máximo dos máximos, em termos de diversão e entretenimento.

Sempre que entro no modo introspecção analítica e incorporo o caboclo narrativa, tento ir reduzindo as características do “jogo” (jogo aqui no sentido conceitual) até o ponto em que a narrativa embutida tenda a zero. O jogo seria, como já disse, basicamente um sistema de aprendizado.

Se você leitor assistiu ao recente filme Real Steel, no qual um garotinho “treina” o seu robô de luta, está perto de entender o que estou dizendo. No filme, o robô opera em dois modos: luta e aprendizado. No modo aprendizado ele registra e repete todos os movimentos do garoto, ampliando assim a sua base de dados para usar no modo luta. Espero que tenha percebido a sutil diferença entre programar os movimentos do robô e ensiná-lo a movimentar-se.

No início do jogo é como se o jogador estivesse diante de uma página em branco. Ops! A página já é um princípio de narrativa embutida, pois ela define não apenas limites mas o que é possível ou não de ser produzido ou reproduzido nela.

No meu caso, por lidar com jogos de computador, termino (ou começo) sempre numa tela preta, com um cursor piscando no canto inferior esquerdo. Ops! Ok, ok, vamos dar um pequeno desconto aqui, senão teremos que partir para o uso da imaginação como sendo a interface do jogo e ai vai ser preciso mais maionese que o normal, para a viagem.

Na tela preta consigo visualizar o que está por trás: um sistema de aprendizagem, que receberá as orientações de “como fazer”. Mas sem nenhum enredo ou ponto pré definido, que direção o jogador vai tomar? O que ele vai fazer? O que passará pela sua imaginação, naquele instante?

Aposto 100 contra 1 que muitos nesse ponto dirão: isso não tem a menor graça e o jogador vai desligar o monitor ou vai jogar outra coisa (paciência?) ou pior ainda, vai para as redes sociais falar mal do nosso jogo: não tem nada lá, só uma tela preta.

Ótimo isso, pois assim ficamos só uns 3 ou 4 que entenderam o exercício e toparam ir adiante. Então vamos.

A amplitude das possibilidades é tamanha que fica difícil resistir à tentação de impor alguma regra inicial. Se você pensou em medieval, espacial ou segunda guerra, errou feio. Qualquer “tema” desses nos obrigaria a definir inúmeras outras regras e sub regras, mais regras da regra, exceções, etc.

Precisa ser algo mais simples, mais direto e mais objetivo. O que nos sugere a página em branco? Ou o monitor com a tela preta? Como tirar algo do nada e que seja ao mesmo tempo instigante e divertido? Estamos no km zero da estrada e o que vier à frente é lucro.

Difícil? Complicado? Impossível? Quer pensar mais um pouco antes de prosseguir? Eu espero. Assim, quem sabe a gente sai um pouco do campo das especulações e entra no campo da experimentação prática.

Enquanto isso não acontece…

É aqui que eu disse anteriormente que (ainda) não tinha encontrado uma solução que me agradasse realmente, mas alguns indícios apontam em uma das possíveis direções. Pelo que me recordo, as poucas vezes em que estive diante da página em branco, digo, do monitor preto, (filosoficamente falando) foi quando iniciei a criação de um jogo.

Mais até do que o resultado final, o processo de construção do jogo foi pra lá de divertido. E realmente foi uma partida do zero, sem ter muitas definições ou amarras. Afinal, tudo o que foi definido e estabelecido (narrativa embutida) foi feito depois de iniciado o processo e portanto criar a narrativa embutida fez parte da narrativa emergente (fala a verdade, você não esperava por essa, não é mesmo?).

Mas, mas, mas… Criar um jogo não é jogar. Jogar é essencialmente competir (consigo mesmo, com o computador ou com outros jogadores).

Será mesmo? Não? Não mesmo? Já ouviu falar em Global Game Jam? Subverti as regras? Mudei o paradigma? Trapaceei? Bem, James T. Kirk fez o mesmo no teste do Kobayashi Maru e…

Autor: Dolemes

David de Oliveira Lemes | @dolemes | Editor do GameReporter. Professor e consultor na área de educação e tecnologia.

11 comentários em “Audaciosamente indo onde nenhum desenvolvedor jamais esteve!”

    1. Tai uma boa questão levantada pelo Raphael Marques. Quem se habilita a responder?

    2. Embora limitados em maior ou menor grau, os makers permitem a criação de jogos interessantíssimos. Tudo depende da capacidade e da criatividade de cada desenvolvedor, mas as limitações em termos de programação podem ser uma barreira para se maximizar a experiência da narrativa emergente. Somente os makers mais flexíveis poderão permitir isso.

    1. O Raphael está certíssimo. Embora o Minecraft possibilite uma interessante experiência de narrativa emergente, ele é digamos pouco flaxível tanto em relação à natureza da narrativa quanto não possui o sistema básico de aprendizagem, que seria fundamental para o tipo de criação que trata os dois posts.

  1. Acho algo muito complexo, esse conceito de algo "se criar" com base "no ambiente" (ou as instruções passadas/aprendidas).
    Se pensamos no universo que conhecemos, veremos que as coisas se "criaram" com base em regras existentes em seu momento.
    Quero dizer, se pensarmos que o nosso blue planet se criou de uma partícula, uma poeira espacial. E analisarmos a evolução envolvida no ponto de poeira -> planeta cheio de água. Veremos que em cada fase deste processo evolutivo, existiram suas regras temporais.
    Por exemplo, o planeta só pode ter o núcleo formado, a partir do momento em que a partícula mãe teve energia calórica suficiente para manter a energia contida. A crosta, só pode se formar, a partir do momento em que planeta dispunha de uma gravidade para manter as formações juntas, e assim por diante.
    Vejam bem, tudo o que digo são devaneios, sinceramente não tenho o conhecimento necessário para dizer como a terra se formou, imagino que tenha sido algo nesse processo.

    Mas dai eu pergunto. Estas regras, mesmo que temporais. Não seriam uma barreira à narrativa emergente !?
    Se pensarmos no processo evolutivo como a "mãe natureza" ou "Deus". Eles não tinha as suas regras/limitações em cada ponto do jogo "crie seu planeta" ?

    Eu acho sim, que podemos tentar criar sistema autônomos que se desenvolvam e evoluam com base nas necessidades/aprendizados disponíveis no ambiente. Mas acho que se não existirem regras, a coisa se torna caótica. E o que pode ser uma criação, pode vir a se tornar uma destruição.

    De todas formas, vou retomar os meus estudos de redes neurais… HAUHAUAHUAHUHAA

    1. Roberto, o ponto é esse mesmo: estamos atrás das regras de criação, pois nos jogos elas não existem com essa, digamos, abrangência que você colocou no seu comentário (afinal não somos deuses, embora seja legal brincar de).

      Nos jogos, tudo já é pensado, programado, preparado, organizado. A única variável flexível e livre é a narrativa emergente, pois ela é única e depende exclusivamente do jogador (não existe narrativa emergente sem jogador).

      A idéia geral da proposta dos posts é encontrar uma forma de criar as regras sem no entanto perder a diretriz maior: no final das contas tem que ser um jogo e tem que ser divertido.

  2. Para eliminar a narrativa embutida, também é preciso eliminar a IA embutida. Mas é complicadíssimo criar uma IA totalmente emergente. O FIFA mais atual está começando isso agora, a IA se adapta ao jogador, mas ainda existe muita IA embutida inicialmente.

    1. Não se trata de eliminar, mas de mudar a forma de programação. Incluir o aprendizado. Ou pelo menos uma simulação de aprendizado (já que não sabemos ao certo como isso funciona em nosso cérebro).

      Lá no meio da década de 80 já publicávamos trabalhos práticos (na revista Micro Sistemas) onde o uso de cálculos estatísticos na seção de decisões, do jogo, dava ao jogador uma sensação de "aprendizado" por parte do computador.

      Mas ainda assim é apenas uma sensação porque o computador não aprendeu a pensar de fato. Nos primórdios da informátia era até plausível acabar acreditando que o jogo de fato "pensava", mas nos dias atuais, com o nível de informação que temos, é esperar muita inocência por parte do jogador.

      Ou não, afinal o Raj (do Big Bang) sabia o tempo todo que Siri não é uma pessoa real mas apenas IA e mesmo assim a sensação de se apaixonar por ela suplantou a razão.

  3. Pingback: Deu tilt na matrix

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