Do Leitor: os três maiores mitos sobre produção de música para jogos

No começo do mês fomos contatados pelo leitor Marcelo Martins, com a proposta de envio de um conteúdo especial que tinha escrito sobre a produção de músicas para games.

Marcelo é jornalista e músico, e fundou recentemente a Clefbits, uma empresa dedicada à produção de trilhas sonoras para videogames. O artigo, que Marcelo escreveu em inglês para o site Game Music, agora foi traduzido para o GameReporter.

Passando agora a palavra…

Os três maiores mitos sobre produção de música para jogos

Por Marcelo Martins

A música tem um papel fundamental em quase todas as formas de entretenimento. Ela é a base emocional para muitos filmes, peças e até mesmo publicidade. Dada a sua importância, é difícil imaginar um produto de entretenimento sem uma trilha sonora marcante dando suporte à trama.

Nos jogos de videogame, a importância da música é ainda maior. Alguns jogos têm duração de 50 a 70 horas, portanto, a música deve ser realmente boa para conseguir manter o interesse dos jogadores por tanto tempo. Ao jogar um game com música irritante, a reação mais comum do jogador médio seria desligar a música ou até mesmo parar de jogar. Ninguém consegue suportar 70 minutos de música ruim.

Os jogos casuais e de curta duração também precisam de boa música. Estes jogos têm poucos segundos para atrair a atenção dos jogadores e, se a música não for boa, provavelmente esses jogadores se sentirão menos atraídos pelo jogo.

Por outro lado, se a música for feita corretamente, os aspectos artísticos e cognitivos do jogo são intensificados, aumentando o interesse do jogador. Boa música torna o produto final mais memorável, bem acabado e atraente. No fim, a música ajuda o jogador a se sentir “dentro” do jogo, uma sensação chamada imersão.

Um dos principais objetivos de todo produtor de jogos é aumentar a imersão dos jogadores. Para atingir esse resultado, os produtores utilizam elementos como: boa jogabilidade, desafio crescente, direção de arte eficaz, narrativa envolvente e, finalmente, música. Porém, ainda existem mitos na indústria de videogames que impedem que a música seja utilizada de forma eficaz. Esses mitos são o assunto principal deste artigo.

Mito número um: Qualquer membro da equipe pode fazer música

A indústria de videogames é altamente competitiva. A cada dia, surge a necessidade de utilizar profissionais especializados para cuidar de cada aspecto do jogo. Mesmo que exista um membro da equipe que possa fazer música (supondo que esta atividade seja secundária na sua vida), é improvável que ele tenha a mesma experiência de um compositor profissional.

A composição é uma arte que leva uma vida inteira para ser aprendida. Mesmo os veteranos com muitos anos de experiência sempre dizem que nunca param de aprender. Isso acontece porque o processo de composição é complexo e depende de muitos aspectos como: tema do jogo, forma de gravação, músicos envolvidos, gênero musical e até mesmo a cultura dominante no período em que o jogo for lançado, só para citar alguns. Em resumo, criar música requer dedicação exclusiva para atingir a excelência.

Os compositores especializados em trilhas de videogames são treinados para criar música que esteja alinhada à direção artística do jogo, sem prejudicar o orçamento alocado para o projeto. Boa música ajuda a integrar demais aspectos do jogo como os gráficos, jogabilidade e história, além de intensificar os aspectos cognitivos do produto, tornando-o mais atraente para os jogadores.

Utilizar profissionais não especializados para criar a música do projeto é uma opção arriscada. Música não adequada ao contexto do jogo pode criar a sensação de que o produto não foi feito com o devido cuidado, comprometendo até mesmo aspectos mais bem acabados no jogo, como jogabilidade e narrativa. Se a música não for boa, provavelmente o jogo causará repulsa em boa parte dos jogadores.

Mito número dois: Quem cria efeitos sonoros também pode criar música

Os conhecimentos, habilidades e competências necessários para criar efeitos sonoros são radicalmente diferentes dos necessários para compor música. Em muitos projetos de produtos de entretenimento, a separação é tão evidente que o profissional encarregado dos efeitos sonoros sequer chega a ouvir o trabalho da pessoa que compôs a música até que o produto final seja lançado no mercado.

O profissional que compõe música é chamado de compositor, enquanto o que produz efeitos sonoros é geralmente conhecido como sound designer, ou projetista de som, em uma tradução livre para o português.

Para ajudar a diferenciar a natureza destes dois trabalhos, segue abaixo uma lista de conhecimentos e habilidades um profissional deve conhecer para compor música e para criar efeitos sonoros.

É possível perceber que não existe um único ponto em comum entre os dois trabalhos, o que enfatiza a grande diferença de perfil e objetivos desses dois profissionais. O compositor está preocupado com a adequação das composições no jogo. Portanto, ele deve ter conhecimento mínimo sobre teoria musical para poder compor música que esteja alinhada à direção artística do projeto. Ele deve também conhecer os gêneros musicais (por exemplo: rock, clássica, música eletrônica) para detectar qual estilo melhor se adequa ao jogo em questão. Compor exige que o profissional conheça muito bem os instrumentos que são utilizados em cada gênero musical. Isso vale para instrumentos reais e também os instrumentos tocados pelo computador, que nada mais são do que simulações de instrumentos reais.

O compositor deve ser capaz de escrever música para compartilhá-la com outras pessoas. Em 2010, é possível criar música sem ter conhecimento musical utilizando programas de computador. Entretanto, a tendência de mercado aponta para trilhas cada vez mais complexas, onde é necessário utilizar orquestras com músicos reais, por isso, a notação musical se torna cada vez mais importante.

Compor envolve muitas pessoas: músicos, produtores, diretores, etc. Por isso, o compositor também deve se comunicar bem para explicar às outras pessoas os seus objetivos e assim atingir o resultado esperado.

O profissional que cria efeitos sonoros é responsável pela inclusão de sons diversos no jogo como explosões, ruídos de veículos, etc. Ele precisa entender como funciona a acústica, que é o comportamento natural dos sons em diversos ambientes. Dessa forma, ele consegue identificar que os passos do personagens dentro de uma caverna devem receber um efeito chamado reverb, ou reverberação. O projetista de som sabe disso porque ele conhece as propriedades físicas do ambiente. A caverna é um ambiente fechado e suas paredes refletem os sons dos passos múltiplas vezes, criando o efeito de reverberação. Se o personagem estivesse caminhando em um espaço aberto, sem paredes, esse efeito não deveria estar lá, já que não existem paredes para refletir o som dos passos.

A maneira mais simples de criar um efeito sonoro é simplesmente gravá-lo em um estúdio ou espaço aberto. A dificuldade desta técnica é que nem sempre é possível gravar alguns sons sem equipamento específico, muitas vezes extremamente caros.

Outra opção para criar efeitos é utilizar sons pré-gravados em bibliotecas de áudio disponíveis no mercado. Essas bibliotecas armazenam milhares de sons classificados por: tema, tipo, contexto, época em que foi gravado, etc. O risco de utilizar sons de bibliotecas é que qualquer pessoa que tenha a mesma biblioteca pode utilizar o mesmo efeito sonoro. Portanto, jogos diferentes podem compartilhar o mesmo som. Para o jogador, isso pode causar a impressão de que o jogo tem baixa qualidade e essa sensação certamente prejudica a reputação de qualquer produtora de jogos.

Para evitar esse problema, o projetista de som deve saber manipular estes efeitos, utilizando programas de computador especializados que transformam o som e geram um resultado diferente do original. É importante notar que isso nem sempre é possível por motivos legais. Algumas bibliotecas de sons tem direitos protegidos que impedem a manipulação dos efeitos publicados.

Ao analisar o trabalho do projetista de som, é possível perceber que ele não precisa de nenhuma competência ou habilidade relacionada à composição para criar um efeito sonoro. Relembrando o exemplo dos passos, existem três principais maneiras de criar esse efeito:

1) Gravar os passos em um estúdio com equipamento específico;

2) Utilizar um som pré-gravado de passos disponível em uma biblioteca de efeitos sonoros; ou

3) Manipular um som totalmente diferente para torná-lo similar ao som de passos.

Nas três opções acima, não é necessário conhecer nada sobre teoria musical, gêneros, notação, instrumentos musicais ou direção musical.

A situação contrária também é verdadeira: o compositor não precisa conhecer as bibliotecas de efeitos sonoros, acústica ou manipulação de efeitos sonoros para compor. Obviamente, é importante conhecer esses assuntos, mas a manipulação de efeitos sonoros não vai ajudar o compositor a criar nada quando o jogo ainda está em um estágio inicial e toda a equipe ainda discute a direção artística do produto.

O compositor deve ser capaz de olhar para as primeiras imagens conceituais do jogo e imaginar a música na sua cabeça antes mesmo de ir para o piano, computador, ou qualquer instrumento de sua preferência. Depois de ter composto a música, ou pelo menos esboçar uma ideia geral de como ela seria, um novo processo se inicia: a produção. O papel do produtor, entretanto, é um assunto que está fora do escopo deste artigo.

Mito número três: O jogo não precisa de música

A audição humana trabalha através da comparação de som, um fenômeno conhecido como memória auditiva. Isso significa que, quando se ouve algo, as pessoas tendem a comparar o que foi ouvido com outro som similar ouvido anteriormente. Quando se ouve uma banda de rock, por exemplo, a memória auditiva compara o timbre da guitarra, a voz do cantor, o som da bateria com outras bandas similares e, assim, reconhece aquela configuração sonora como banda de rock.

Quando a primeira banda de rock da história se apresentou para o público, as pessoas ainda não tinham adquirido a memória auditiva daquele gênero, portanto, compararam a primeira banda de rock com o que era mais próximo: o blues. Só que não era exatamente blues, era um blues mais pesado, agressivo, com mais atitude. É exatamente isso que ocorre na história da evolução dos gêneros musicais, novos gêneros são criados a partir da evolução e modificação dos antigos e a memória auditiva das pessoas vai reconhecendo essas modificações e se adaptando ao novo contexto.

Um projeto de jogo de videogame começa com uma abstração, uma ideia ou apenas um conceito. É muito difícil para uma pessoa não treinada imaginar música para um projeto tão embrionário. Afinal de contas, não existe como comparar essa música com algo, já que a própria ideia principal do jogo ainda nem foi desenvolvida.

Com o desenrolar do projeto, muitos aspectos do jogo começam a tomar forma: história, personagens, jogabilidade, etc. Se não existir um compositor no time de produção, a música não vai se desenvolver, deixando a impressão de que música não é necessária.

É importante envolver o compositor nos momentos iniciais de concepção do projeto, para que a música se desenvolva tão bem quanto os outros aspectos do jogo. O compositor é o profissional que pode auxiliar a equipe de produção neste processo. Ele dirá qual o tipo de música mais adequada para o projeto, quando ela deve aparecer e qual o impacto sensorial desta música no jogador. Alguns projetos funcionam melhor com música minimalista, onde os temas só aparecem em momentos específicos como lutas, passagens narradas, etc. Existem projetos, em que a música assume o papel principal, como os variados jogos musicais atualmente disponíveis no mercado.

Conclusão: O compositor é importante em qualquer projeto de videogame

Independente do tamanho e complexidade do projeto, o compositor é o profissional mais indicado para orientar produtores e diretores em relação à composição musical. Este profissional tem as habilidades e conhecimentos necessários para criar música adequada para intensificar a imersão dos jogadores, respeitando o orçamento disponível para o projeto. Na história dessa indústria, jogos clássicos sempre possuem música memorável.

Autor: Dolemes

David de Oliveira Lemes | @dolemes | Editor do GameReporter e do GameOZ. Professor da PUC-SP e consultor na área de educação e tecnologia.

3 comentários em “Do Leitor: os três maiores mitos sobre produção de música para jogos”

  1. Bacana o artigo, principalmente para quem ainda tem dúvida sobre as duas funções citadas e suas importancias. Aliais, até hoje eu fico tentando imaginar como seria o Castlevania SOTN sem as músicas da Michiru Yamane.

  2. Gostei do texto. Bastante direto e conciso como é possível e se espera de um blog que trata dos jogos eletrônicos de modo generalista. A partir das considerações apresentadas torna-se possível procurar outras leituras ainda mais aprofundas de modo mais direcionado e de acordo com a formação do profissional que lida com tais aspectos da produção de um jogo.

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