Desenvolvimento de games, tecnologia e sociedade: por mais humanos com humanidade

*Por Jean Rafael Tomceac

Recortes de telas de sites e redes sociais.

Já faz algum tempo que a falta de mão de obra especializada é o calcanhar de Áquiles de muito paises. Na área de tecnologia o gargalo é gigantesco, não faltam ofertas de formação de novos cérebros, no entanto, são quase inexistentes iniciativas que repensem a cidadania, a transformação social com oportunidades para todos e todas.

É só você dar uma busca ai com “vaga tecnologia” no seu navegador preferido para achar ofertas de trabalho para trabalhar remotamente na área. Bom isso você já deve ter visto e ouvido por ai, mas vale lembrar que até 2025 a demanda por profissionais da área deve chegar a 400 mil vagas** só no Brasil.

Para entornar mais o caldo, a novidade é que profissionais de tecnologia de nossas terras tem sido “atacado” por headhunters(caçadores de cabeças em Português, um nome hipe para dizer a pessoa do RH que seleciona canditados) do mundo inteiro para receber em Dólar.

Pensa comigo, você trabalha com tecnologia tem um “bom” salário, algo em torno de R$ 5.000,00 para uma posição inicial, ambiente amistoso, equipe colaborativa, desafios e até a sorte de ter uma líderança inteligente, ética e cabeça aberta… Um belo dia, na internet em páginas que você frequenta, um algoritmo te acha e aparece aquele anunciosinho maroto personalizado “Trabalhe remoto. Não precisa de visto para os EUA. Altos Salários”. Você ignora pensando: – Isso não é pra mim! E, toca o barco na navegação das páginas na web. Dias depois, recebe uma mensagem com a oferta de emprego no exterior em que a remuneração de começo beira os USD 5.000,00, cinco vezes mais do que recebe. A depender do seu momento profissional, você não pensa mais duas vezes, agradece a oportunidade de ter trabalhado na empresa em que está, põe na rede social que “fechou um ciclo” e completa o post com o bordão “vou em busca de novos desafios”.

Parece um conto de fadas corporativo, mas acredite, isso é mais comum do que imagina! A procura por este pela pessoa que traballha com tecnologia ficou profissional a ponto de termos a uma curiosa “metaprocura”. A posição de trabalho de pessoa “Recrutadora especialista em tecnologia” aparece em primeiro na entre os 25 empregos em alta em 2022, segundo Linkedin em matéria publicada pela Exame***.  Essa semana ouvi dizer que começam a surgir cargos de diretores de RH especializados em tecnologia. 

A bem da verdade, pouco entendo dessa área de seleção e recrutamento, quiça das denominações mais modernas chamadas de “atração e retenção de talentos”. Sei que passei quase três semanas buscando um dev(abreviação da palavra developer em inglês, pessoa desenvolvedora de tecnologia em Português), para compor equipe na finalização de um projeto de um instituto que estamos apoiando e que me brilha os olhos. Estava em atrás de alguém com conhecimento em programação na plataforma de desenvolvimento de games Unity e publicação em lojas de aplicativos. Propósito o projeto tem, o conteúdo lúdico envolve pensar e repensar o espaço público e a cidadania em uma aplicação para dispositivos móveis totalmente gratuita para o usuário no mais puro mix de realidade aumentada e phygital (união das palavras em inglês phycal e digital, fisico e digital em Português). Ao final de quase um mês de procura, não encontrei ninguém e desisti desta estratégia. A solução veio de pessoas que conhecia, amigos e amigas que me deram uma grande ajuda para conseguir terminar o projeto.

Bom, não precisa ser estatístico para saber que a “cassada” por pessoas desenvolvedoras vai aumentar exponencialmente. Existem muitas escolas e iniciativas que oferecem conteúdos e formação para criar novos braços e mentes para o trabalho com tecnologia, tanto gratuito, como no estilo ganhe bolsa e pague depois de se formar. Se você quer dar uma virada na sua carreira e entrar para este mundo, comece ontem a estudar e entrar para o hall dos escolhidos de oportunidades na área. Depois que você chegar lá, só não esquece de ajudar quem tá começando, tá?

Meu ponto é que podemos chegar a uma situação onde os extremos vão se extremar ainda mais.

De um lado a precarização de trabalhos sem especialização e nenhum tipo de contrato ou relação trabalhista, como a massa de pessoas que estão na informalidade, pessoas que arriscam a vida realizando entregas de produtos e alimentos de bicicleta ou de moto, pessoas trabalhadoras por aplicativos de transporte, entre outros. No mesmo espectro estão pessoas jovens que não realizam o sonho do primeiro emprego; os “nemnem”, nem trabalham nem estudam; os desalentados de todas idades, que desistiram de procurar trabalho; a falta de oportunidades para diversidade com foco em mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+… Não é questão de ser pessimista ou se apresentar como o cavaleiro do apocalipse das más notícias. É ser realista! Quanto mais você olhar, infelizmente, a lista de gente que precisa de uma chance é grande e variada.

De outro lado, estão pessoas que de alguma maneira conseguiram se especializar na tecnologia e ter “acesso” a oportunidades de melhor remuneração e um mínimo de dignidade para, com isso, poderem realizar sonhos e desejos, obter acesso a bens de consumo e porque não, conforto!

Fica a reflexão sobre como, quando e onde enquanto sociedade, vamos encontrar uma maneira de equilibrar a balança. Pensar em cidadania e transformação social atualmente envolve a tecnologia e visão de futuro. Apoiar e trabalhar para iniciativas com propósitos que tentam reduzir estes extremos pode ser uma alternativa, em um país que historicamente tem falhas graves em distribuição de renda, falta de emprego e oportunidades dignas.

Tem uma fala de alguém que estava junto de Nelson Mandela na luta contra o Apartheid, foi Nobel da Paz e nos deixou recentemente, Desmond Tutu! Dizia ele “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor…”

Espero que este texto possa contribuir com o pensamento sobre a condição de nossa sociedade atual e permita ajudar a tentar compreender o lado que se escolhe quando situações de injustiça social aparecem.

Um grande amigo, também designer de games, me disse outro dia que cada um escolhe o moinho de vento que quer lutar(Don Quixote, lembra?). Penso que na situação em que vivemos, cada um é capaz de enxergar claramente qual “causa” se engajar.

Por mais humanos com humanidade, sempre!
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* Game designer, producer and digital Ludologist

Lado A: Gosto de gente, experiências sensoriais que repensam o digital, bicicleta e praia, muita praia.

Lado B: 15 anos de experiência na área de Tecnologia, Inovação e Games. Professor, mentor e consultor de projetos e startups de Tecnologia, Educação e Impacto Social. Experiência profissional nacional e internacional com atividades em instituições de referência como: HundrED.Org, SEBRAE/SP, CIEB, Min. TIC (Gov. da Colômbia), SENAC/SP, Comkids Interativo, Science Film Festibal BR, Goethe Institut(São Paulo e Munich), entre outros. É bacharel Tecnologia e Midia Digital e mestre em Educação: Currículo na área de games e tecnologia. Atualmente realiza pesquisa de doutorado em Educação na Faculdade de Educação da USP na área de games e letramento digital.

** Fonte: Brasscom. Disponível em: https://brasscom.org.br/pdfs/relatorio-setorial-de-tic/ Consultado em: 05/02/2022.

*** Fonte: Exame. https://exame.com/carreira/25-profissoes-que-vao-bombar-em-2022-segundo-o-linkedin/ Consultado em: 05/02/2022. 

Atualização da tecnologia e cultura digital das crianças: o tiozão do Roblox. Ou, porque você deveria prestar mais atenção nos joguinhos de crianças

Sobre como o avanço vertiginoso de games influenciam comportamento, caracterizam o universo infantil e moldam novas fronteiras para entretenimento e empreendedorismo

Com algum tempo de estrada na área de games e inovação, ainda não me deixo de surpreender com a velocidade de atualização com que a área de games se reinventa. A mais quente novidade é o forte crescimento de jogadores(as) do Roblox, um game que repensa a forma de jogar e a construção de ambientes imersivos.

Lembra do mega sucesso Minecraft? Então, o Roblox tem algumas semelhanças relacionadas a criação de objetos, casas, rios, lagos, etc, mas vai além! Permitindo não só construção de um ambiente, jogos e ferramentas, mas, principalmente, a comercialização de cenários e objetos 3D.

A plataforma acumula até o ano passado 8 milhões de usuários considerados, ao mesmo tempo, de jogadores(as) e desenvolvedores (criadores), que geraram mais de 20 milhões de experiências digitais, 30.6 bilhões de horas de engajamento e USD 329 milhões pagos desenvolvedores*.

Os números são impressionantes! Mas confesso que meu interesse pelo Roblox não veio dessa veia de mercado, mas sim, de suas potencialidades lúdicas e de aprendizado. Deixa te explicar!

Já faz uns três anos que lançamos um curso de introdução à programação para crianças utilizando o Roblox Studio. À época, coordenava a área de tecnologia educacional em uma das unidades de uma grande escola particular na região sul de São Paulo(Capital). E, junto com outros colegas coordenadores e professores, planejamos uma trilha de aprendizagem com a plataforma envolvendo uma gradação de aprendizagens relacionadas ao tema.

Tenho para mim que foi um dos momentos em que mais ouvimos nossos alunos(as). Estava nítido o interesse deles pelo Roblox. Não podíamos deixar passar a oportunidade de trazer para dentro da escola, algo que eles já conviviam, no mais puro exemplo da cultura digital entrando na sala de aula. Lembro de conversar com os alunos(as) sobre como seriam as aulas e a empolgação para que realmente se formasse um grupo e tivéssemos quórum para iniciarmos.

Não deu outra! A turma foi formada e a tão esperada aula de introdução a programação com Roblox aconteceu.

Nas minhas lembranças, o ponto alto foi quando um dia, ao subir para a lanchonete, cruzei com um dos alunos do curso.

As crianças costumam ter uma reação eufórica e apaixonante quando te encontram em algum lugar fora de costume, no meu caso, a sala de aula. E, veio aquela frase inesquecível: – Você é o tiozão do Roblox!

Acho que foi ali que realmente assumi minha identidade de jogador sênior, mas de espírito curioso infanto-juvenil. Passei a tentar me aproximar cada vez mais o universo dos pequenos e como o lúdico digital saudável influenciam comportamentos e moldam atualizações na cultura digital.

De forma bem inconsciente esse episódio me marcou. Hoje não estou mais naquela escola, me desliguei por questões pessoais e para tocar outros projetos que começavam a decolar.

Talvez tenha sido dessa experiência com a criação do curso de Roblox que tive mais clareza para trilhar os caminhos da pesquisa que atualmente realizo na área de letramento digital e o período final da alfabetização (Letramento em Português). Pois me ajudou a desenvolver algumas atividades pedagógicas em parceria com um professor da terceira série (Ensino Fundamental 1) de uma escola pública, também, na região sul, no Jardim Campo Limpo. Bolamos sequências focando em autonomia dos alunos(as), eles(as) tinham tarefas de mapeando dentro e fora da sala de aula, para depois construírem a experiência no digital utilizando a plataforma Scratch.

A plataforma Roblox segue batendo recordes atrás de recorde. Se tornaram uma das plataformas com maior audiência para o público menor de 18. E, como acontece com quase todo bom game, está fazendo repensar a experiência lúdica digital com seus mundos abertos, ferramentas e cenários. Ao passo, em que extrapola sua classificação de “plataforma educacional” e de “apenas um joguinho de crianças”, para remodelar a economia criativa com novas formas de entreter e empreender.

*Fonte: site Roblox. Disponível em: https://corp.roblox.com/. Acessado em: 23/03/2021.